Madrugada de domingo, dor incessante na cabeça, um talho na testa, depois a parestesia, o rosto paralisado, mãos, braços, perna e pé esquerdos também. Era um AVC, não podia ser outra coisa Primeiro três socorristas do SAMU, depois mais quatro, sete pessoas na minha sala, PA 09/06, cada vez eu entendia menos do que me perguntavam.
Será que morri, me perguntei. Eu apenas via o Carlos desesperado, mais até do que eu. "Aperta minha mão... Você está me ouvindo?", um deles falou. Algo estava desconectado, como que fios soltos. Será que morri? Será que vou morrer? De certo como todo mundo morrerei, mas em quais circunstâncias não sei.
Eu, Lobo, dancei uma meia vida com a morte desde a adolescência, descoberta da minha sexualidade e o quanto isto seria espinhento para aqueles que estavam ao meu redor e que não reconheciam-me como igual. Meu pai sai de casa, meu melhor amigo morre afogado, me afogo em relacionamentos fúteis, rasos, em busca de que/quem nunca soube.
Eu estava vivo e isto era tudo o que tinha. "Aperta a minha mão!", me disse a socorrista, eu acho, não há muitas certezas sobre o ontem. Só uma talvez quando eu disse com metade da língua dormente que "por favor não me deixassem morrer, que eu ainda tinha muito por fazer". Eu me emocionei e torno a me emocionar agora.
"Saturação 74!". A agulha que entra, a primeira convulsão - disseram que foram sete ao todo - a veia que queima, "Etilefrina! Ele tá parando!". Eu não tinha idéia do que estava acontecendo comigo em minha casa, minha toca onde me sinto seguro. "40mg de Hidantal", laços, forquilhas nos meus braços e pernas, luzes e solavancos, já não sabia onde estava. De repente uma máquina barulhenta e ninguém mais comigo, de repente mais solavancos e gritos de uma mulher, luz forte no rosto, silêncio. Será que morri?
Acordo e sou informado que tive uma isquemia transitória e que nenhum achado foi obtido na tomografia. Apaguei mais uma vez e acordei com Carlos andando de um lado para o outro, lá fora, que Homem! Vozes e rostos começaram a fazer sentido, eu acho, no que parecia ser uma enfermaria, dois idosos, duas enfermeiras, eletrodos presos ao meu peito, uma faixa de esfigmomanômetro no braço esquerdo, um oxímetro no indicador esquerdo, aqueles bipes incessantes e as fluorescentes que me queimavam a retina; eu estava preso naquela maca, mas nada daquilo me mantinha vivo. Fosse o que fosse, seja lá o que tivesse me acometido havia passado e a mim parecia que eu estava lá como quem em uma fila, só que deitado, vendo a vida acontecendo, as luzes frias das fluorescentes por trás dos vidros das janelas cedendo para um sol morno lá fora.
"Eu quero um médico, eu quero alta e água". Não sei com que ordem disse o que disse, mas eram estas minhas urgências. Era como se eu estivesse falando às paredes, não havia possibilidade de esperar afeto alí. O médico adentra à enfermaria e começa "a da ponta é terminal, só mantenha a morfina, o do meio não sei se vai sair do O2, e este da ponta de cá quem é?", eu o interrompi e disse que "ele podia perguntar a mim mesmo, eu ainda sabia meu nome". Ele se desculpou, talvez não esperasse que aquele que estava catatônico/sedado há uns tantos ainda fosse dono de alguma consciência já recobrada.
-- Então você é o Hugo, o que sente?
-- Raiva.
-- Está acompanhado?
-- Sim, meu parceiro me espera lá fora.
-- Você tem AIDS?
Eu apenas respondi que não; estarrecido com uma pergunta tão estúpida àquela hora.
-- Eu quero alta médica agora, eu quero sair daqui!
-- O senhor não pode, precisa se estabilizar.
-- Eu estou estável, mas não garanto que vou permanecer assim se o Sr. me fizer outra pergunta medonha dessas baseada no fato de que tenho um companheiro lá fora com quem vivo há 11 anos, por ser viado enfim (!).
-- É que o senhor teve uma isquemia transitória e uma série de convulsões. É preciso aguardar.
Eu sinceramente raciocinei sobre o que aguardar significava, se esperar na acepção da própria palavra por uma piora ou melhora (?), só, ouvindo aquele homofóbico nojento, olhando as enfermeiras caminhando naquela marcha marcada, os gritos daquela senhorinha apesar de toda a morfina que tomara. Eu estava bem, isto é relativo, e só queria sair dalí.
-- Eu respeito muito o trabalho do senhor e das senhoras enfermeiras e eu estou ocupando um leito que provavelmente estaria servindo alguém realmente necessitado. A isquemia se foi assim como veio: do nada. Eu estou me dando alta agora mesmo.
Arranquei os eletrodos do peito, o esfigo, e tudo o mais que me mantinha amarrado àquela maca. Sentia muito ódio e desolação. Fechei o acesso da mão direita com a esquerda, pra minha surpresa os movimentos finos e alguma força considerável já haviam me retornado. Me levantei como quem levanta para a guerra; eu já havia sido atropelado na mesma semana, eu nunca poderia acreditar que fosse frágil. Saí andando aos passos tortos, descalço, sangue em ambas mãos pingando. Consegui chegar na recepção do hospital onde tentaram me barrar a saída e eu gritei sonoro: EU SOU LIVRE! NÃO ME TOQUE! E assim o segurança saiu do meu caminho. Lá desamparado eu vi Carlos, eu não consegui decifrar o que via, se alívio, medo, orgulho. Talvez tudo e até mais do que pude conceber até aqui.
Este relato acima é confuso porque confuso eu me sentia e se te fiz sentir minha confusão fiz este texto cumprir com seu papel narrativo. Não me julgue, caro leitor, leitora ou leitore. Eu não te julgo. Se pareci selvagem é porque estes foram os instintos e pulsões mais profundos que à superfície da minha psique vieram, que minha selvageria seja entendida como os esforços de alguém que lutava pela própria vida e dignidade. Os hospitais de urgência e emergência da cidade de Aracaju não estão preparados para pacientes com convalescenças neuro-psiquiatricas.
Eu convivo com a epilepsia há 32 anos, já dancei muito com a morte com ideações suicidas no passado e hoje eu encaro episódios como este - além do coma há mais ou menos quatro anos, adoecimentos severos, o pânico de ter ficado preso em um elevador de um prédio antigo, os acidentes de carro e o mais recente atropelamento - como uma maneira drástica de me redimir para com a vida pelo desamor passado para com a minha própria. Não é uma coleção de tragédias ainda que independente do que eu diga o pareçam de fato. Esta é minha vida, é a minha história, por mais que doa.
Escrevo na madrugada do dia 21 de Dezembro ainda perturbado e ressacado com todas as medicações que recebi, mas ao mesmo tempo invadido por um sentimento de gratidão por estar vivo tão inquietante (quase elétrico) que me encontro insone. Eu quero acreditar que fui salvo porque sou capaz de salvar outras pessoas.
Que a vida aceite minha gratidão. Se me perguntares o que sinto neste exato momento direi sem titubear que sinto uma titânica necessidade de viver e de fazer minha vida valer à pena.
De todo sincero como a madrugada me permite.
Hugo Lobo